Dublinenses (James Joyce)

Alguns escritores infelizmente carregam uma fama de “difíceis” por conta de uma ou outra obra. Digo infelizmente porque é a tal fama que afasta possíveis novos leitores não só da obra que seria a razão desse “estigma”, mas também de outras que ele possa ter vindo a publicar que nada apresentam de hermético ou, digamos, até complicado. O caso mais representativo disso é o de James Joyce, evidentemente. Você, leitor comum, que lê por prazer e não por qualquer obrigação “ego-acadêmica”, provavelmente leu o título deste texto e já torceu o nariz. Ih, Dublinenses do James Joyce. Lá vai mais uma pessoa falando desse cara que eu nunca vou ler porque todo mundo sabe que ele “escreve difícil”. Vamos então para a boa notícia: se o Luciano já afirmou que James Joyce não é tão difícil, tenha certeza que Dublinenses é nada difícil. E pode inclusive convencê-lo a tomar fôlego para as outras obras do irlandês. Mas estou me apressando, vamos por partes.

Primeiro que já tinha lido Dublinenses há alguns anos, em inglês. O fato de eu ter “conseguido” ler sem qualquer dificuldade no idioma original serve para atestar que você não terá nenhum bicho de sete cabeças em mãos caso decida conhecer esta coletânea de contos de James Joyce. Segundo que este mês surgiu uma ótima oportunidade de conhecer o livro, já que a editora Hedra acabou de lançar Dublinenses com tradução de José Roberto O’Shea, um dos grandes nomes da tradução literária no Brasil. A tradução foi publicada anteriormente 20 anos atrás, mas O’Shea teve a oportunidade de revisá-la de tal modo que o próprio tradutor na introdução diz “o texto aqui publicado configura uma nova tradução”. Saiba portanto que se esse será seu primeiro contato com James Joyce, você estará em boas mãos.

Uma história para um livro

A história já é famosa, mas vale a pena contar (especialmente para os que desejam ser autores publicados). James Joyce começou a enviar os manuscritos de seu Dublinenses em 1905, quando tinha então 23 anos. Se pensa que o fato de ser ainda relativamente jovem faria com que ele aceitasse qualquer imposição do editor, vale dizer que ele defendeu sua coletânea com unhas e dentes, arrumando briga até com tipógrafos para que ela fosse publicada tal como Joyce imaginava que deveria ser. Resultado? Nove anos aguardando publicação.

As dificuldades eram variadas. Alguns contos eram considerados obscenos e deveriam ser “mutilados”, outros deveriam ficar de fora. Mas Dublinenses não é mera coletânea de contos agrupados sem qualquer elemento que os una além do fato de se passar em Dublin. Há mais por trás da ordem em que eles se apresentam, como se apresentam (e óbvio, quais se apresentam). Por isso mesmo gastando com advogados e com muita luta, Joyce insistiu que o livro deveria ser daquela maneira. E então foi publicado apenas em junho de 1914, e em uma carta citada na introdução, Joyce diz que foi rejeitado por 40 editoras!

Então fica a lição: não desanime. Até James Joyce foi rejeitado.

Dublinenses, a estrutura

Como dito antes, o elemento de coesão dos contos da coletânea não é Dublin. Dublin é fundamental, sim, quase uma personagem. É palpável, e não à toa muitos apaixonados pela cultura irlandesa adotam o livro como uma Bíblia, suspirando ao reconhecer nomes de ruas, imaginando os cheiros e cores tais como descritos por Joyce. Há de se considerar a importância do que Joyce fez (e aí não só com Dublinenses, é evidente) considerando o histórico daquela nação, a relação com a Inglaterra, a luta para criar uma identidade dissociada do país que os explorava. Retratando a cidade, suas pessoas e seus hábitos, Joyce cria um sentimento de reconhecimento e, mais importante, de orgulho, mesmo que a imagem que mostre não seja necessariamente bela e perfeita. É o que é, e por isso a identificação é imediata.

De qualquer forma, retornando à linha de raciocínio, a questão é que apesar da importância da cidade, ela não é o “cimento” de Dublinenses. A coesão se dá por uma ordem que representa os estágios da vida de um homem, da infância à vida adulta. Ao longo dos quinze contos gradualmente as personagens vão envelhecendo, e envelhecem também os conflitos que elas enfrentarão. Por isso a ordem é tão importante, e esse é um dos motivos que levaram Joyce a bater o pé sobre alterações. Ele fala da cidade, sim. Mas ele fala do homem. Faz de Dublinenses um espelho para que seus leitores se reconheçam naqueles pequenos retratos de momentos simples, mas tão carregados de significados. E ao retratar o ser humano, muito embora sua mira esteja apontada para um grupo específico de pessoas de uma época específica, ainda assim ele consegue falar com leitores mesmo quase cem anos após a publicação do livro.

Cabe relembrar que não, não é difícil ler Dublinenses. Mas Joyce quer que você assuma um compromisso. Não basta simplesmente decodificar o texto. A prosa de Joyce é sutil, e muito do que se tira dos contos não está necessariamente escrito lá. As histórias parecem absurdamente simples se lidas apenas em seu sentido óbvio – são realmente recortes das vidas de dublinenses, momentos em alguns casos até bastante banais. Mas carregados de tantos outros sentidos que Joyce nos convida a refletir um pouco assim que terminamos cada conto. O exercício é viciante, e a brevidade de alguns contos faz com que você acabe emendando uma leitura à outra sem nem perceber o tempo passar. Para quem tem aquela imagem de autor só para iniciados, quem diria que James Joyce poderia ser tão gostoso?

Estágios da vida

Os contos que representam a infância são “As irmãs”, “Um encontro” e “Araby”. Já no primeiro conto temos uma boa amostra do que será a leitura de Dublinenses. O garoto é avisado que um padre com quem mantinha amizade falecera e vai até seu velório. Sim, o conto é basicamente isso. E é aí que entra o que comentei sobre ler o que não está no texto. Confesso que passei algum tempo pensando sobre a conclusão, a fala das irmãs. Mais ainda, de por que Joyce escolhera esse título se a figura central é na realidade o padre. São reflexões como essa que surgirão nas outras páginas, como nas brincadeiras dos meninos de “Um encontro” ou na desilusão do garoto em “Araby”.

Seguimos então para a juventude (o conceito de adolescência é relativamente novo, então vamos usar “juventude” aqui), com “Eveline”, “Depois da corrida”, “Dois galãs” e “A pensão”. É interessante observar com esse conjunto como com o aumento da idade dos protagonistas, parece que vai ampliando também a densidade dos contos, os sentimentos explorados começam a ficar mais complexos. Desse estágio o meu favorito é “Dois galãs”, especialmente por causa da força das imagens como descritas por Joyce – acredito que é o que melhor me “transportou” para aquele momento da vida de Corley e Lenehan.

Chegamos então na fase adulta. O’Shea em sua introdução ainda divide em mais uma fase, a vida pública, mas acredito que uma está contida em outra, de certa forma. Nesse estágio temos “Uma pequena nuvem”, “Duplicatas”, “Barro”, “Um caso triste”, “Dia de hera na sede do comitê”, “Mãe”, “Graça” e “Os mortos”. O último – o mais longo da coletânea – é também considerado por muitos como o mais representativo da obra de Joyce, justamente por trazer alguns elementos que se repetem bastante nos 15 contos. A morte, a paralisia e a epifania, além, é óbvio, do retrato dos costumes da época. O marido se dando conta de que nunca poderá competir com alguém que já morreu pelo espaço no coração da esposa. Os pensamentos de Gabriel no desfecho do conto são belíssimos, e não à toa o texto costuma ser a referência número um ao falar dos Dublinenses de Joyce. ((A saber, existe um filme baseado neste conto, de 1987, lançado no Brasil como Os vivos e os mortos)).

Insisto na questão de que Dublin é sim uma figura importante, mas que o modo como Joyce retrata suas personagens faz com que essas histórias pudessem acontecer em qualquer lugar, alterando-se nomes de lugares e questões típicas dos irlandeses. “Mas sobra algo tirando Dublin e questões típicas dos irlandeses?”, você poderia perguntar. Sobra. Como dito, sobra o ser humano, com todos seus pensamentos mais profundos, nas qualidades e defeitos. O crítico Harold Bloom costuma reconhecer como genialidade de Shakespeare o fato de ele retratar tão bem o homem, então prolongando esse raciocínio para o que se vê nas páginas de Dublinenses pode ser considerado sim trabalho de um gênio. Sem invencionices na narrativa, sem neologismos – Joyce é o que é mais do que é capaz de fazer com a linguagem, mas também pelo retrato que faz das pessoas.

Oi, você chegou até aqui?

E assim Dublinenses vem como resposta para quem quer impor ao Joyce a condição de autor que só pode ser lido por iniciados. Você pode se emocionar e se ver nas páginas de Dublinenses sem que para isso tenha ido para Dublin ou tenha cursado uma disciplina sobre James Joyce na faculdade. É uma leitura que flui sem qualquer dificuldade, mas que ao mesmo tempo pede comprometimento do leitor – e por isso serve como um exercício delicioso de leitura. Por muitas vezes esquecemos do nosso papel como leitores, e esperamos passivamente que uma história se revele diante dos nossos olhos. A pluralidade de sentidos que pode ser retirada de Dublinenses faz dessa coletânea uma experiência única e – tenha certeza – ótima fonte de conversa entre outros amigos que já puderam conferir.

Se posso deixar algum conselho é que perca o medo de Joyce, pelo menos para Dublinenses. Esse encontro vale a pena por ser tão marcante. Não só para os irlandeses, mas para todos nós, amantes das boas histórias. Para encerrar, só mais algumas informações: a edição da Hedra, além de uma capa belíssima, tem introdução de O’Shea que por si só já basta para quem ainda assim está inseguro de encarar James Joyce. Encerrando a coletânea há ainda três cartas de James Joyce sobre Dublinenses.

Dublinenses James Joyce Tradução: José Roberto O’Shea 208 Páginas Preço sugerido: R$38,00

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Editora Hedra

7 thoughts on “Dublinenses (James Joyce)

  1. Estava lendo esse livro na tradução “anterior” do O’Shea, mas acho que reiniciarei a leitura com a edição resenhada.

    Realmente, Dublinenses é uma bonita porta de entrada para o mundo de Joyce. Ainda que não lembre de praticamente nada dos contos que li 7 anos atrás, lembro que gostei bastante de cada conto, ao contrário do que foi a leitura de “Retrato…”, “Giacomo Joyce” e “Música de câmara” (este, acho mais provável que eu só tenha pego emprestado, não lido mesmo).

    E essa tradução é mais do que recomendável.

    1. primeira vez que li dublinenses confesso que achei legal, mas não me marcou, tanto que muitos contos eu não lembrava bem e a sensação que tive ao reler o livro é que em alguns casos parecia uma primeira leitura. engraçado, não? eu não sei se fez diferença a segunda leitura o fato de eu estar mais madura (como pessoa, como leitora, etc.) mas gostei muito mais agora.

      1. +2.

        Igualzinho comigo.

        A única diferença entre Dublinenses e os outros que eu lera é que eu lembrava de ter gostado deste, enquanto tinha achado os outros chatos.

  2. ~desabafo~
    Ai, Anica… Dublinenses pra mim tá sendo muito difícil. Sério.
    Estou gostando. Sem dúvida cada conto dá uns tapinhas na cara do leitor, mas… Nossa, como eu demoro pra ler! Não sei, leio uma história e ela me toma tanta coisa que não consigo continuar. Preciso ler a próxima um dia ou mais depois.
    Pra mim Joyce é sim difícil. Talvez pelos temas… Ou pq tô lendo inglês. Sei lá. Mas é bom.
    Faltam 3 contos pra acabar. Tô nessa faz um mês, mais ou menos.

    1. Oi, Nathalia =D

      Você costuma ler livros em inglês há algum tempo, ou tá começando? Porque olha, eu lembro que nas minhas primeiras tentativas lendo em inglês eu achei até O Guia do Mochileiro das Galáxias meio chato hahahaha. Não sei, no começo eu não conseguia focar. Parecia que lia as palavras, mas minha cabeça estava em outro lugar. Por isso perguntei se vc já tem mais experiência com livros em inglês. Caso tenha, aí é aquela coisa, né: nenhum livro é igual para todos os leitores, então está ok não curtir, achar difícil ou sei lá o que. O que eu acho que é que vc não deve desistir completamente de Joyce. Lembro que na faculdade estava me sentindo culpada por não conseguir seguir adiante com Ulysses e minha orientadora disse “espere, que um dia ainda será um prazer”. E eu mal comecei a tradução do caetano e acho que esse dia chegou, hehe. Enfim, o que quero dizer é: para tudo tem um momento, inclusive para livros. Não tá legal, não fica se forçando, não. Dá uma outra chance outra hora. Mas se aceita uma sugestão, vai pela tradução do O’Shea, que está bem gostosa de ler mesmo. =]

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