Deixa ela entrar (John Ajvide Lindqvist)

Meu primeiro contato com o romance Deixa ela entrar, do sueco John Ajvide Lindqvist, foi através da adaptação para o cinema de 2008, chamada Låt den rätte komma in. O responsável pelo roteiro do filme foi o próprio Lindqvist, então rapidamente imaginamos que há uma grande aproximação entre o filme e o livro – o que para mim ficou evidente ainda no mesmo ano, quando li a tradução para o inglês da obra (chamada Let the right one in). E desde então muita água rolou, o filme ganhou uma versão americana (chamada de Deixe-me entrar, que eu ainda não vi), e agora a Globo Livros lançou uma tradução em português direto do sueco, com o título Deixa ela entrar, que tive a oportunidade de ler recentemente. Aviso de antemão que como eu não sei lhufas de sueco, qualquer comentário a seguir sobre a tradução é baseado em teorias e, bem, na lembrança da primeira leitura em inglês.

Até por causa da relativa demora para o livro chegar por aqui é importante contextualizar a obra, para compreender porque ela conquistou tanta gente. A estreia do filme em 2008 (o livro é de 2004) coincidiu com o auge da febre Crepúsculo, que trazia o conceito de vampiros para adolescentes. A franquia de Stephenie Meyer não é de maneira alguma precursora, mas é certamente uma das maiores divulgadoras de uma fórmula que foi repetida exaustivamente ao longo dos anos (na realidade, até hoje), sempre trazendo o amor impossível entre um ser sobrenatural (vampiro, lobisomem, fantasma, boitatá, ou o que for) com um humano. E Deixa ela entrar tem essa fórmula, porém de uma forma muito, muito diferente do que esperamos em livros do tipo. O livro acabou se tornando um anti-Crepúsculo, ou ainda, um Crepúsculo para quem não suporta uma dose muito alta de sacarina e prefere nossa realidade, muito mais dark.

A começar pelo protagonista, o adolescente Oskar. Ele não tem nada do “herói” típico de livros assim. Tem problema de continência urinária (tendo que desenvolver uma bizarra bola para absorver o xixi) e sofre bullying na escola. Por bullying compreenda todo o horror que essa palavra pode trazer: ele apanha de fortões da escola, que o chamam de Porco e o aterrorizam de todos os modos possíveis. A vida de Oskar é um inferno, chegando ao ponto em que sozinho, ele tenha o hábito de brincar de esfaquear uma velha árvore, imaginando que o faz com os garotos que o maltratam na escola. É quando chega na vizinhança a garotinha Eli, que em suas estranhezas se reconhecem e passam a ser amigos.

Há uma jogada interessante que Lindqvist faz sobre a chegada de Eli. Há um assassinato na região, e aos poucos vamos juntando informações para saber que quem os pratica é Håkan, um pedófilo apaixonado por Eli e que pratica os crimes porque precisa alimentá-la com sangue. Ok, leitor, você já pegou esse livro sabendo que trata-se de uma história de vampiros, então logo deduz que Eli é uma vampira. Mas Oskar não faz ideia, e o leitor tem a oportunidade de ir acompanhando pouco a pouco não só a amizade que é criada entre os dois, mas também de como Oskar descobre a natureza de Eli. Deixa ela entrar é sim uma história de horror, e tem todos os elementos lá (há uma cena bastante inusitada em que Eli reconhece que a pessoa de quem bebeu sangue tinha câncer e tinha tomado morfina). Mas acho que funciona principalmente como uma metáfora de como ser adolescente pode ser difícil e solitário.

E a partir de agora comentarei uma questão que tem a ver com a tradução, e daí meu comentário inicial já adiantando que não sei sueco, então estou só especulando. Enfim, a questão é sobre o sexo de Eli. No filme de 2008 há tanta sutileza que muitas pessoas nem perceberam que Eli na realidade é um garoto (há um momento em que aparece uma cicatriz no local onde seria a vagina/pênis de Eli, mas é tão rápido que só se você estiver muito atento para ver e tirar um sentido dali). No meu caso, foi só quando li o livro que me dei conta disso – porque Lindqvist diz, com todas as palavras, que Eli era um menino e que tinha sido castrado (daí a cicatriz que vemos no filme). Só que ao ler o livro em português algo me incomodou. Nos diálogos entre Eli e Håkan, ele se refere a Eli como um garoto. É algo sutil que provavelmente só quem sabe o que está procurando vai achar, mas fiquei até curiosa para saber o motivo por essa opção. No original em sueco, há algo na conjugação dos verbos que acaba entregando o sexo de Eli? Porque no inglês o verbo acaba ficando neutro sem um “she” ou “he” indicando o gênero, permitindo que a ambiguidade se prolongue. Vou colocar aqui trechos do português e do inglês para ficar mais claro o que quero dizer:

Em inglês:

‘Do you mean that?’

‘No, I don’t. But you could do it yourself.’

‘I’m still too weak.’

‘You’re not weak’

Como se nota, nesse trecho não há qualquer indicação de gênero, nem mesmo no adjetivo weak (outra característica do inglês que não ocorre no português). Na tradução nacional o mesmo trecho segue assim:

– Você quer isso?

– Não, não quero. Mas você mesmo… pode.

– Eu estou fraco demais, ainda.

– Você não está fraco.

Como disse anteriormente, eu não entendo sueco para saber qual era o original e se de repente a ambiguidade só se sustenta em inglês. Caso em sueco realmente fique claro já nos primeiros diálogos entre os dois que Eli é um garoto, então talvez o efeito que Lindqvist buscava era fazer com que nós leitores soubéssemos desde sempre que Eli era um vampiro (garoto), e Oskar o via apenas como uma garotinha. Por outro lado, minha dúvida sobre essa intenção do autor vem até quando o próprio texto da orelha se refere a Eli como uma vampira (garota), isso para não falar do título, Deixa ELA entrar. De qualquer modo, não é algo que estrague a trama como um todo, são apenas divagações que acabam surgindo em uma segunda leitura. Mas em tempo: eu não cheguei a ver a versão americana, mas ao que tudo indica, Eli é uma garota do começo ao fim nessa adaptação.

De qualquer forma, a sensação geral que Deixa ela entrar passa é de que é um livro sobre adolescentes mas que não é só para adolescentes. Os temas explorados são pesados e trabalhados sem nenhuma lente cor-de-rosa: bullying, pedofilia, assassinato, drogas – há de tudo ali. E o grande mérito de Lindqvist é fazer com que do ambiente mais improvável surgisse uma história como a de Oskar e Eli – tão torta e ao mesmo tempo tão doce que uma das imagens que ficarão gravadas por mais tempo na sua memória serão as batidas de Oskar para se comunicar com Eli, ou mesmo as palavras finais do narrador: “Mas bem que é diferente quando se é jovem“.

Deixa ela entrar
Autor: John Ajvide Lindqvist
Tradução: Marisol Santos Moreira
Páginas: 504
Preço: R$ 49,90

19 thoughts on “Deixa ela entrar (John Ajvide Lindqvist)

  1. Eu juro que nunca tinha desconfiado dessa coisa do gênero até ler o livro. Na parte em que estou ainda não dá pra ter tanta certeza, mas já dá pra ter uma noção de que há algo VERY VERY estranho.

    “O livro acabou se tornando um anti-Crepúsculo, ou ainda, um Crepúsculo para quem não suporta uma dose muito alta de sacarina e prefere nossa realidade, muito mais dark.” Foi ao cerne da questão. O nível de choque vampiresco, além de não ser amenizado pelo “Hmmm, acho que vou viver de sangue de ursos para não matar ninguém”, fica no mesmo nível de outras coisas não inventadas, coisas da realidade mesmo.

    Estou gostando muito do livro. Como já falei em off, repito: a resenha tá DEZ. ^^

  2. Nossa, que estranho isso. Vi apenas o filme sueco e não percebi essa cicatriz, como você disse. Mas agora, mesmo sem ter lido o livro ainda, fiquei muito curioso quanto ao sexo de Eli… Quer dizer, agora sei que se trata de um menino, mas no filme pensei que fosse uma garota também. Confuso…
    O importante é que quero muito ler esse livro, e gostei de saber nessa resenha que o filme, no geral, é bem parecido com o livro.

      1. Hum, obrigado. Vou tentar reparar da próxima vez. Talvez eu até tivesse notado, mas como assisti ao filme faz muito tempo(quer dizer, ano passado, mas minha memória é fraca pra lembrar isso)…

      1. Obrigado :D! É, muita coisa que passou batido. Mas, como já quero ler o livro mesmo, vou deixar pra ver o filme de novo só depois da leitura.

  3. Ao contrário de ti, só tive contato com o filme americano. A não ser que eu tenha deixado passar, a Eli (Abby, no filme) é menina, sim. Ou, ao menos, nada indica em contrário. Gosto bastante do filme, cheguei a comprar o livro em inglês uns tempos atrás, mas acabei não lendo. Quem sabe agora, em português…

    1. Eu me enrolei para ver o filme americano (e acho que continuarei enrolando) justamente por causa disso. Na hora que vi quem interpretaria a/o Eli já tinha sacado que eles não teriam culhões (haha, sem trocadilho) de colocar um casal gay na história (e pelo que você falou, acho que acertei).

      Mas ouvi dizer que a trilha sonora é ótima, hehe

  4. Curti a resenha, Anica, e curiosamente, esse papo sobre gênero me fez pensar que há mais sexualidade nesse romance que em “Cinquenta Tons de Cinza”. 😀

    (Tá bom, parei.)

      1. Aí entra na questão de se o sueco tem ou não a marcação de gênero. Em inglês ficamos sem gênero (Let the right one in) mas em português já ficaria difícil fugir do gênero traduzindo o título literalmente “Deixe a pessoa certa entrar”, talvez. Anyway, o título faz referência a uma música do Morrissey, o que não deixa de ser interessante já que a ideia é situar o livro na década de 80, e a música em questão saiu no Viva Hate, de 88. Os versos seguem assim:

        Let the right one in
        Let the old dreams die
        Let the wrong ones go
        They cannot, they cannot
        They cannot do what you want them to do.

  5. Nao li o livro ainda, então nao sei se bate com o filme nessa parte. Mas no final, o Oskar vai embora com a Eli, o que me sugeriu que a história do Hakan fosse se repetir com o Oskar… ele conhece a Eli com uns 13 anos e a acompanha, o que “minimizaria” a pedofilia.

    Gostei muito da resenha!

      1. No livro fala de quando Hakan conheceu Eli. Já era uma relação com quê de pedofilia, sim.

        Mas também tive a sensação de que o guri seria o novo Hakan de Eli e que isso iria se repetir ad eternum.

  6. Fico feliz pelo livro ter chegado ao Brasil! O espero há bastante tempo! Os filmes tendem a romantizar bastante a relação e esse não é bem o caso do livro! Só havia lido críticas, não vejo a hora de ler!

  7. Esperei bastante a chegada desse livro no Brasil, e ele vem pela… GloboLivros. Achei que fosse ser por uma editora melhor. Tens alguma reclamação acerca desta edição? Fico na dúvida entre o conforto de ler em português, e a possibilidade de praticar e enriquecer o meu conhecimento lendo em inglês.

    Gostei da resenha! =)

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